RPGs Afro-Brasileiros: 4 Jogos Revolucionários que Quebram o Padrão Medieval

O que são RPGs afro-brasileiros?

RPGs afro-brasileiros são jogos de mesa criados por autores negros do Brasil que exploram narrativas, culturas e perspectivas africanas e afro-diaspóricas, rompendo com o tradicional cenário medieval europeu dominante no gênero. Estes jogos oferecem representatividade autêntica e experiências culturais enriquecedoras.

O cenário dos jogos de mesa no Brasil está passando por uma transformação significativa. Enquanto o mercado tradicionalmente se concentrava em narrativas eurocêntricas e ambientações medievais, uma nova geração de criadores negros está expandindo os horizontes da fantasia, ficção científica e aventura urbana através de perspectivas autenticamente brasileiras e africanas.

Esta revolução silenciosa está acontecendo através de quatro títulos que não apenas divertem, mas também educam, representam e provocam reflexões profundas sobre identidade, resistência e cultura. Kalymba, Quilombo Zero, Full Metal Cria e O Legado representam marcos na produção nacional de RPG, cada um oferecendo experiências únicas que desafiam convenções estabelecidas.

Estes jogos emergem de um contexto onde a população negra brasileira, apesar de ser maioria demográfica, permanece subrepresentada nas mídias geeks e nos jogos de mesa. A criação destes RPGs representa não apenas uma questão de entretenimento, mas um movimento de ocupação de espaços e afirmação de identidades culturais.

O impacto destes jogos transcende o aspecto lúdico, funcionando como instrumentos de empoderamento e educação cultural. Através de mecânicas inovadoras e narrativas envolventes, eles convidam jogadores a repensar conceitos fundamentais sobre heroísmo, comunidade e poder.

A força motriz por trás destes títulos é o coletivo Melanina RPG, formado por pessoas pretas e pardas que se propuseram a resgatar e compartilhar narrativas que celebram suas vivências e saberes como jogadores de RPG. Este coletivo oferece suporte, inspiração e espaço para autores transformarem o cenário nacional.

Kalymba: Épico de Afrofantasia com Axé e Ancestralidade

Desenvolvido por Daniel Pirraça, Kalymba transporta os jogadores para Aiyê, um continente fantástico inspirado em diversas culturas africanas. Este mundo vibrante é regido por orixás e movido pela energia vital chamada axé, oferecendo uma alternativa refrescante à tradicional fantasia medieval europeia.

Afro RPG: 4 jogos criados por autores negros do Brasil que vão além do  medieval

O cenário de Kalymba apresenta protagonistas vivendo em savanas expansivas, florestas gigantes e ruínas místicas, enfrentando criaturas inspiradas diretamente no folclore africano. Esta ambientação não apenas diverte, mas também educa sobre a riqueza cultural do continente africano, frequentemente negligenciada em produções mainstream.

O sistema de jogo utiliza o intuitivo +2d6, favorecendo o desenvolvimento de personagens únicos e diversos. Sem classes pré-definidas, os jogadores moldam seus protagonistas através de habilidades, mandingas e histórias pessoais, criando uma experiência verdadeiramente personalizada.

A progressão do personagem segue uma jornada simbólica, evoluindo de Moleque a Lenda, em um ciclo que valoriza igualmente guerreiros, curandeiros e diplomatas. Esta abordagem democrática reflete valores comunitários africanos, onde diferentes papéis sociais são respeitados e valorizados.

A magia em Kalymba se expressa através de palavras de poder – mandingas que vão desde pequenos rituais até grandes transformações. Esta mecânica conecta diretamente o sistema à oralidade e espiritualidade das tradições africanas, transformando cada sessão em um ato de evocação cultural.

Com sua abordagem vibrante e profundamente enraizada em referências africanas, Kalymba transcende o entretenimento convencional, funcionando como um convite à descoberta de um continente mágico que resiste ao apagamento histórico através do jogo.

Quilombo Zero: Afrofuturismo e Resistência nas Favelas do Amanhã

Criado por Lucas Nascimento, Quilombo Zero representa uma fusão única entre afrofuturismo, cyberpunk e imersão na realidade social das comunidades brasileiras. A ação se desenrola no Quilombinho, uma favela vibrante e tecnologicamente criativa que floresce com inovação e coletividade apesar das adversidades.

Quilombo Zero: novo RPG nacional está em financiamento coletivo! – Joga o  D20

Neste cenário futurista onde pipas dividem o céu com drones, os jogadores assumem o papel de DEVs – agentes de uma resistência que enfrenta corporações, paramilitares e políticos corruptos sem recorrer necessariamente à violência. Esta abordagem reflete uma filosofia de resistência inteligente e criativa.

O sistema do jogo mantém simplicidade e acessibilidade, utilizando três atributos principais: Processamento (Proc), Software (Soft) e Hardware (Hard) com rolagens de 3d6. A ausência de níveis convencionais é substituída por Pontos de Aprendizado, que fortalecem tanto personagens quanto o Refúgio coletivo, refletindo a filosofia Ubuntu.

O sistema de Oráculo permite ao narrador e jogadores determinar elementos narrativos de forma aleatória, incentivando improvisação e exploração criativa. Esta mecânica dinâmica torna o jogo ideal para sessões one-shot ou campanhas descontraídas, mantendo frescor e imprevisibilidade.

O cenário do Quilombinho funciona quase como um personagem próprio, com casas feitas de materiais reciclados, árvores bioluminescentes e peixes robóticos nos rios. Esta ambientação propõe um futuro onde sustentabilidade e tecnologia andam lado a lado, oferecendo uma visão otimista de desenvolvimento comunitário.

Quilombo Zero transcende o entretenimento, desafiando jogadores a refletir sobre coletividade, pertencimento e inovação social, configurando-se como um RPG revolucionário nos aspectos mecânico, narrativo e político.

Full Metal Cria: Infância Periférica e Robôs no Melhor Estilo Anime

Full Metal Cria, criação de Lucas Conti (autor do premiado Mojubá), combina espírito lúdico e nostálgico com representatividade significativa. Inspirado nos animes dos anos 2000 como Beyblade, Medabots e Bakugan, o jogo transporta jogadores para um mundo onde crianças da periferia constroem e lutam com robôs chamados Crias.

Full Metal Cria - Guia de Criação de Personagem - Movimento RPG

Cada jogador controla dois personagens: uma criança e seu Cria. Enquanto a criança age com Pontos de Drama e avança com características narrativas (amizade, ingenuidade, esperteza), o Cria entra em ação com rolagens de dados e personalizações mecânicas. Esta dualidade reflete a complexidade da infância e da criatividade.

Os laços emocionais entre criança e Cria são centrais na jogabilidade, refletindo uma infância cheia de sonhos, dificuldades e improviso – elementos muito reais para quem cresceu na quebrada. Esta mecânica emocional adiciona profundidade narrativa ao combate robótico.

A estética do jogo é um espetáculo à parte, remetendo à cultura pop periférica, ao improviso criativo e ao desejo de vencer o sistema com recursos disponíveis. A IA dos robôs está armazenada nos celulares dos treinadores, e o corpo das máquinas é moldável e cheio de upgrades.

Esta configuração funciona como uma metáfora potente sobre crescimento e transformação, mostrando como limitações podem ser superadas através da criatividade e determinação. O jogo celebra a infância negra e periférica como potência criativa e emocional.

Full Metal Cria representa uma celebração da capacidade de sonhar alto mesmo quando o mundo parece estar contra nós, oferecendo uma perspectiva única sobre resilência e imaginação na periferia brasileira.

O Legado: O Lado Sombrio da Fantasia Urbana Brasileira

Escrito por PH Autarquia, O Legado mergulha jogadores em um mundo urbano sombrio onde o sobrenatural convive com a tecnologia. Com forte inspiração no cristianismo e especialmente no catolicismo, o jogo subverte dogmas e cria uma realidade paralela marcada por herdeiros de poderes antigos.

Os jogadores interpretam membros da Sociedade dos Herdeiros, seres despertos que conhecem as regras invisíveis do mundo. O sistema utiliza dados percentuais (d100) e aposta em um grau de profundidade raro nos RPGs nacionais, com regras para Alma, Esperança e Presságios.

O cenário é povoado por vampiros, feéricos, dragões e outros seres fantásticos que atuam nos bastidores da realidade mundana. A mega corporação MTech, que une magia e tecnologia, simboliza a tensão constante entre tradição e modernidade no universo do jogo.

O Legado impressiona pela amplitude, oferecendo regras detalhadas para combate, exploração, poderes mágicos e até veículos. Simultaneamente, permite criar personagens ricos em história, com ancestralidade, roda da vida e escolhas dramáticas que impactam o enredo.

Este RPG atende jogadores que buscam drama, dilemas éticos e batalhas internas tanto quanto confrontos sobrenaturais. Representa uma fantasia urbana com DNA brasileiro, profundamente reflexiva e visceral, explorando temas universais através de uma lente cultural específica.

A profundidade mecânica e narrativa de O Legado estabelece novos padrões para a produção nacional de RPG, demonstrando que jogos brasileiros podem competir em qualidade e sofisticação com produções internacionais.

A Nova Geração de RPGs com Alma, Cultura e Revolução

Estes jogos desafiam padrões estéticos e narrativos do RPG tradicional, frequentemente limitado a castelos medievais, dragões e magos, ampliando significativamente o repertório cultural dos jogadores. Ao se envolverem nesses mundos, os participantes são convidados a repensar conceitos fundamentais sobre heroísmo, comunidade, poder e identidade.

Full Metal Cria' é um jogo de RPG sobre crianças e robôs lutadores  inspirado nos animes dos anos 2000 - Portal Perifacon

O impacto transcende o entretenimento, funcionando como instrumentos de representatividade e empoderamento. Em um país onde a população negra é maioria mas permanece subrepresentada nas mídias e jogos, estas criações amplificam vozes e experiências frequentemente apagadas ou marginalizadas.

Jogar estes RPGs constitui uma prática lúdica que também é política, uma forma de ocupar espaços, contar novas histórias e afirmar a potência das identidades negras. Esta dimensão política não compromete a diversão, mas a enriquece com significado e propósito.

Além dos títulos principais, outros RPGs criados por pessoas negras contribuem significativamente para o cenário nacional: URSAL de Marco Bym, A Lenda do Dragão de Fogo de Thiago Rosa e Nina Bichara, Mojubá de Lucas Conti, e Herdeiros dos Antigos de Jorge Valpaços.

O coletivo Melanina RPG não apenas produz jogos, contos e resenhas, mas também constrói uma rede de afetos para outros criadores de conteúdo. Esta comunidade oferece suporte essencial para o desenvolvimento de novos talentos e projetos inovadores.

Estes RPGs representam convites à escuta e criação coletiva, demonstrando que o futuro dos jogos de mesa brasileiros está sendo moldado por vozes diversas, perspectivas autênticas e narrativas que celebram a riqueza cultural do nosso país.


Conclusão

Os RPGs afro-brasileiros estão redefinindo o cenário nacional de jogos de mesa, oferecendo alternativas ricas e culturalmente significativas ao padrão medieval europeu. Através de Kalymba, Quilombo Zero, Full Metal Cria e O Legado, jogadores descobrem mundos que celebram a diversidade, promovem representatividade e desafiam convenções estabelecidas.

Estes jogos provam que entretenimento e educação cultural podem caminhar juntos, criando experiências lúdicas que também são transformadoras. O movimento representa não apenas uma evolução no design de jogos, mas um marco na luta por representatividade e inclusão no universo geek brasileiro.

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